Estudo aponta que é cada vez maior a atuação de sistemas privados no ensino fundamental nos municípios brasileiros
A compra de
serviços educacionais ofertados pelo setor privado por prefeituras, como
a formação ou treinamento de professores e apostilas, vem crescendo no
Brasil: em alguns casos, grupos empresariais chegam a, para todos
efeitos práticos, assumir a orientação da política de educação do
município, criando situações que violam aspectos importantes do direito à
educação, como a adaptabilidade e a acessibilidade. É o que diz estudo
coordenado pela ONG Ação Educativa e desenvolvido com a participação do
Grupo de Estudo e Pesquisas em Políticas Educacionais (GREPPE) da
Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, USP e Unesp, e realizado com
apoio da Open Society Foundations e da Campanha Latino-Americana pelo
Direito à Educação.
O
relatório publicado sobre o assunto, intitulado “Sistemas de Ensino
Privados na Educação Pública Brasileira: Consequências da
Mercantilização para o Direito à Educação”, aponta que “a
municipalização abrupta e mal planejada do ensino fundamental nas
últimas duas décadas (...) explicitou a precariedade de muitas das
administrações locais, gerando um promissor mercado para assessorias
privadas nos campos pedagógico e de gestão”.
O
texto prossegue notando que essa situação estimula uma “proliferação da
lógica privada na educação pública e a incidência dos atores
empresariais na gestão da política educacional”, o que se dá “em
detrimento dos mecanismos de participação democrática e do
fortalecimento de atores comprometidos com a estruturação de sistemas
públicos de educação”.
O
trabalho pode ser obtido, online, no site do Observatório da Educação,
projeto da ONG Ação Educacional. Esse mesmo site traz também um mapa dos
municípios onde se sabe que foram adotados sistemas privados de ensino
na rede pública municipal:
http://www.observatoriodaeducacao.org.br/mapas .
Expansão
A
pesquisadora Theresa Adrião, da Faculdade de Educação, conta que
grandes grupos educacionais privados, que já ofereciam conteúdo para
cursinhos pré-vestibular e escolas de ensino médio, passaram a ver nos
municípios – responsáveis pela educação infantil e fundamental – um novo
mercado.
“Esses
grupos encontraram mesmo um novo ‘filão’ para o seu mercado. Num
determinado momento, expandiram seus sistemas, seus formatos de ensino
padronizado, porque voltado para a preparação para vestibulares
competitivos, para escolas privadas ‘franquiadas’”, disse. “Essa mesma
lógica agora foi expandida para a rede pública”.
“Através
da adoção dos sistemas privados padronizados enfatiza-se o planejamento
centralizado dos aspectos pedagógicos, que são assim terceirizados para
agentes privados de fora da rede de ensino local”, aponta, por sua vez,
o relatório.
O
trabalho chama ainda atenção para o fato de que é difícil levantar dados
concretos sobre quantos municípios, exatamente, adotam esses sistemas, e
quais são os sistemas usados em cada cidade. “É preciso ressaltar a
dificuldade de acesso a informações sobre a adoção de sistemas privados
de ensino pelos municípios brasileiros, uma vez que não existem dados
consolidados pelas instâncias de governo em nível federal, e o país é
dividido em 5.570 municipalidades”, explica o texto. “Tal configuração
impossibilitaria, nos limites deste trabalho, uma checagem município a
município. Ao mesmo tempo, os Tribunais de Contas de Estados e
Municípios que, por analisar contratos dos entes federados com
prestadores de serviços privados, poderiam ter dados mais abrangentes,
em sua maioria não estão preparados para organizar e disponibilizar
estas informações ao público”.
“Tivemos
uma dificuldade muito grande, a despeito da Lei de Acesso à Informação
(LAI), de obter informações, apesar de serem recursos públicos”,
acrescentou Theresa. “As empresas, quando contatadas, não respondem, e
as prefeituras, também não. A não ser aquelas com que já tínhamos algum
tipo de contato no Estado de São Paulo. Tínhamos, numa pesquisa anterior
feita em 2010, 345 municípios, que optaram por esse tipo de política,
[o Estado de São Paulo conta com 645 municípios]. Ou seja, mais de 50%
dos municípios paulistas já adotavam sistemas privados há seis anos”.
“O
que se sabe hoje é que o avanço da lógica privada sobre o setor público
afeta o direito humano à educação, tendendo a produzir, na maior parte
dos casos, aumento das desigualdades educacionais, com maior prejuízo
para as populações em situação de maior vulnerabilidade”, disse Gustavo
Paiva, da ONG Ação Educativa e coautor do trabalho. “Neste contexto, o
estudo se propôs a analisar quais são os impactos da adoção de sistemas
privados de ensino para a realização do direito humano à educação. A
conclusão é de que estes sistemas tendem a reduzir a disponibilidade de
recursos, reduzir a capacidade do poder público de planejar e gerir seus
sistemas educativos e reduzir a autonomia de professores, além de não
haver garantia de melhoria na qualidade e o devido controle social”.
Recursos
Theresa
lembra que o governo federal já mantém um Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD) que oferece material gratuito para as redes municipais
de ensino, o que faz com que parte dos gastos das prefeituras em
material didático privado possa ser encarado como desperdício.
“E
a gente tem um mercado que é disputado por grandes grupos, mas também
por inúmeros outros pequenos grupos que veem nas redes públicas esse
“filão’”, disse ela. “Ocorre que o recurso público destinado para a
aquisição desse material, e acho que esse é um dos principais alertas
desta pesquisa, é o mesmo que seria destinado para pagamento de
professor, ou mesmo para construção de escolas. São gastos que concorrem
entre si e, num período de escassez de recursos como o que estamos
vendo hoje, isso é seríssimo”.
A
pesquisadora relata que as prefeituras contatadas oferecem alguns
argumentos, “com base na realidade objetiva”, para adotar dos sistemas
privados. “As nossas escolas não oferecem a educação que seria
necessária para os seus estudantes, têm muitos problemas, então há uma
preocupação legítima, por parte dos gestores, em ofertar um ensino de
qualidade para essas pessoas”, reconhece.
“Entretanto,
para muitos gestores, a ideia de qualidade é aquela vendida por essas
empresas, é uma qualidade que se baseia fundamentalmente numa
padronização curricular”, afirma. “Então, a questão da padronização como
condição para melhoria do ensino é a justificativa de alguns dos
gestores”. Há casos, no entanto, em que a adoção desses sistemas é uma
decisão política do prefeito e independe da posição de secretários ou
gestores da área.
Serviços
As
empresas, explica a pesquisadora, oferecem pacotes de serviços cuja
composição varia com o interesse e a capacidade de pagamento das
prefeituras. “Vão desde o material instrucional, as apostilas, que são
padronizadas para todos, ignorando uma questão que para qualquer
educador é fundamental, que é considerar objetivamente o grupo com o
qual ele trabalha”, disse. “Depois, oferece-se formação ou qualificação
para o uso desse material, e ao mesmo tempo um call-center para atender à
escola, caso haja dúvida em como usar o material. O que entra no lugar
da formação que deveria ser oferecida pelos gestores”.
“Também
se vendem modelos de avaliação: avaliação das escolas, dos estudantes –
sistemas de avaliação da própria empresa, para além dos testes de
avaliação a que as escolas já são submetidas”, acrescentou Theresa. “E
há cestas de serviços que incluem um tipo de supervisor na escola: vai
um representante da empresa na escola ver se o professor está adotando o
material segundo a orientação da empresa”.
“Verificamos
que esse tipo de compra de serviço acaba incorrendo num problema grave
que é substituição da política educativa dos municípios pela política
educacional da empresa”, disse.
Custo e qualidade
A
adoção desses sistemas pode representar uma queda de custos para as
prefeituras, mas Theresa define o resultado como um “barateamento no mau
sentido”. “Com isso, os governos na verdade não precisam investir na
formação e na profissionalização de um corpo técnico para acompanhamento
dessas escolas”, disse.
“No
lugar de ter uma equipe de supervisores ou um núcleo de formadores na
estrutura da secretaria, você compra isso e cada prefeito que muda, muda
eventualmente o programa, muda a empresa”, aponta. “Já indagamos a
alguns profissionais: tudo bem, a prefeitura não teria recurso para
investir num corpo técnico, então por que não contatam as universidades
públicas que, enfim, poderiam cumprir essa função?” Uma resposta
possível, segundo a pesquisadora, é que “há uma sedução por parte dos
grupos empresariais”. “Eles vão às prefeituras, oferecem muito
fortemente esses produtos e serviços para os prefeitos e secretários e
acabam envolvendo, muitas vezes, os gestores”.
Quanto
à promessa de qualidade, argumento de venda oferecido pelas empresas
com base no renome dos cursinhos pré-vestibular em que algumas se
baseiam, ela nem sempre é cumprida, e é de difícil mensuração. “Uma das
pesquisas anteriores que fizemos, lá no começo dos anos 2000, viu quais
os municípios que essas empresas apresentavam como ponta de lança em
suas ações de propaganda, municípios então bem colocados em rankings e
indicadores nacionais de educação. Eram municípios com alto IDHM (Índice
de Desenvolvimento Humano Municipal). Portanto, já tinham condições, do
ponto de vista educacional, de apresentar melhor qualidade que a média.
Ou seja, tem um viés de seleção aí”.
Fonte: http://www.unicamp.br/unicamp/ju/651/relatorio-revela-privatizacao-da-educacao-publica-no-pais
Texto: Carlos Orsi
Fotos: Antoninho Perri
Edição de Imagens: André Vieira
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