País em leilão com a promessa do Estado mínimo
Carta Capital, publicado 05/10/2016 05h05, última modificação 05/10/2016 13h20
No último mês, Cristina (o nome é
fictício, mas a cidadã é de carne e osso) recebeu uma carta do Ministério do
Desenvolvimento Social e Agrário. Ela tem direito ao Benefício de Prestação
Continuada (BPC), no valor de um salário mínimo.
A razão é um filho,
de 22 anos, que desenvolveu microcefalia durante a gestação e tem dificuldades motoras e cognitivas, devido a
patologias no cérebro, como a displasia cortical e uma anomalia que impede a
migração neuronal.
De acordo com a correspondência,
Cristina terá de passar por um novo processo de averiguação de seu benefício.
Seis anos após conseguir o auxílio, ela tem de apresentar novamente todos os
documentos necessários para provar que seu filho não fala, não anda e usa
fraldas. E precisa do BPC, destinado a idosos e pessoas com deficiência e sem
condições de trabalhar.
Assim como Cristina, outros 4,2 milhões
de brasileiros que recebem o benefício terão de passar até novembro pela
revisão determinada pelo governo Temer. Mais do que uma simples verificação,
espera-se economizar pelo menos 800 milhões de reais com benefícios a serem
descontinuados.
A medida é apenas um
dos passos de uma ação maior destinada a reduzir o tamanho do Estado
brasileiro. Pilar dessa política a sustentar o governo é a Proposta de Emenda
Constitucional 241/2016, também chamada de PEC do Teto de Gastos.
Tratada como prioridade máxima pelo
Palácio do Planalto, a PEC tem como objetivo colocar um limite para as despesas
primárias dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para cada exercício,
pelos próximos 20 anos. Na prática, significa que o governo só poderá gastar
até um determinado valor em itens relevantes como pessoal, saúde, educação,
transferência de renda e Previdência, entre outros.
É a proposta que garante
governabilidade a Temer no Congresso. Juntamente com a reforma da Previdência,
que pretende mudar as regras para a concessão de aposentadorias, o ajuste das
contas públicas é tido como uma das principais razões da aliança entre PMDB e
PSDB no governo.
Por conta disso, o
tema tem sido tratado com urgência pelos interlocutores do presidente.
Inicialmente, a ideia era colocar a PEC em votação até o fim de outubro. Mas,
passadas as eleições municipais, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), marcou a votação para o próximo dia 10 de outubro.
O interesse do PSDB pela aprovação
da pauta explicita o caráter da proposta, perfeitamente afinada com a política
de austeridade. De acordo com o texto da PEC, o Orçamento para os gastos
públicos de cada ano será definido pelo crescimento da inflação do ano
anterior. Portanto, deixa de ser vinculado à Receita ou ao crescimento do
Produto Interno Bruto (PIB).
Isso quer dizer que, mais do que
impedir o governo de gastar valores superiores ao que arrecada, a proposta
impede aumento de gastos em áreas sensíveis mesmo que o País se torne mais
rico. Tal é a principal regra e, segundo o texto, só poderia ser revista
por iniciativa exclusiva do presidente da República após dez anos, em 2026.
O prazo final do
ajuste se completaria somente em 2036, após mais de dois mandatos presidenciais
completos. Conclusão: o Novo Regime Fiscal retira da sociedade e do Parlamento
a prerrogativa de moldar o tamanho do Orçamento, definido
agora pela inflação.
Ao colocar um limite para os gastos da
União pelas próximas duas décadas, independentemente dos governos que possam
vir a ser eleitos ou de uma melhora da situação econômica, a proposta
basicamente institucionaliza um ajuste fiscal permanente.
“O objetivo é reduzir o tamanho do
Estado, é uma austeridade contratada por 20 anos”, explica o professor da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Pedro Linhares
Rossi. Cálculos feitos com base na regra proposta pelo Planalto corroboram
os seus argumentos. O professor da Unicamp analisou os gastos com despesas
primárias para os próximos anos num cenário de crescimento do PIB de 2,5% ao
ano, a partir de 2018. Os números mostram que, com a PEC 241, os gastos do PIB
com esse tipo de despesa cairiam dos atuais 19% do PIB para cerca de 12% em
2036.
Rossi explica que isso tornaria o
Estado muito menor que a economia brasileira, o que impediria uma intervenção
governamental em uma situação de crise financeira. “A PEC vai retirar do Estado
aa possibilidade de fazer frente a crises. Não há uma cláusula de escape nessa
PEC, coisa rara nos regimes fiscais no mundo todo. Ou seja, se acontecer mais
uma crise internacional, o que nós vamos fazer? Nada”, conclui.
Cabeça por trás da
proposta, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. Justificativa: a raiz
do problema fiscal do Brasil é, segundo ele, o crescimento elevado do gasto
público, que seria incompatível com o crescimento da Receita.
“No período 2008-2015, essa despesa
cresceu 51% acima da inflação, enquanto a Receita evoluiu apenas 14,5%”, diz o
texto que integra a PEC, assinado por Meirelles e Dyogo Henrique de Oliveira,
atual ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão.
A tese de descontrole das contas
públicas tem gerado muitos questionamentos. Segundo o Departamento
Intersindical de Estudos Econômicos (Dieese), a observação dos dados referentes
a receitas e despesas contradiz essa afirmação.
“As despesas
primárias, como se disse, tiveram um comportamento compatível com o aumento das
receitas até 2012”, diz a Nota Técnica 161, elaborada pela instituição em
setembro, sobre os impactos da PEC 241. Para o Dieese, o
descompasso dos gastos começa de forma mais profunda com o ajuste fiscal
implementado pelo ex-ministro Joaquim Levy, ainda sob o comando de Dilma
Rousseff, justamente quando a União cortou gastos e o Estado deixou de
contribuir com a economia.
A consequência foi que a receita
despencou e os gastos continuaram no mesmo patamar. “O problema fiscal está
associado à estagnação econômica de 2014, seguida pela crise, e ao ajuste
recessivo adotado em 2015.” Foi nessa época que “as receitas se deprimiram,
comprometendo o equilíbrio fiscal”, diz o texto.
Em outras palavras, segundo o Dieese, o
aprofundamento da recessão fiscal no País é, em parte, responsabilidade do
próprio ajuste, que agora se apresenta como solução para a economia ao aviar a
mesma receita: corte de gastos.
O próprio Fundo
Monetário Internacional (FMI) chegou a uma conclusão parecida recentemente. Em
maio, três economistas da instituição publicaram um artigo dizendo quepolíticas neoliberais podem gerar efeitos nocivos para a economia de países em
desenvolvimento. Por exemplo, aumentar a desigualdade.
Ao falar em
neoliberalismo, o FMI refere-se às medidas de austeridade. “Os benefícios de algumas
políticas que são uma parte importante da agenda neoliberal parecem ter sido um
pouco exagerados. Em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais
aumentaram a desigualdade, colocando em risco uma expansão duradoura”, confessa
o Fundo.
“Mesmo que o crescimento seja o único
ou principal objetivo da agenda neoliberal, os defensores dessa agenda devem
prestar atenção nos efeitos de distribuição”, complementa.
Enquanto o FMI alerta para a importância da distribuição de renda, o
governo Temer tenta apagar esse termo da trajetória brasileira para os próximos
anos. A pedido do presidente, a Comissão Mista de Orçamento do Congresso
Nacional alterou o texto que trazia os objetivos do Projeto de Lei de
Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2017, ao traçar as metas e prioridades da
gestão pública federal e orientar a Lei Orçamentária anual.
Foram retirados os termos que comprometiam a administração pública
federal a assegurar “distribuição de renda”, o “fortalecimento dos programas
sociais”, bem como a execução de “políticas sociais redistributivas”.
O texto que embasa a PEC 241, assinado por Meirelles e Oliveira, ainda
diz que conter o aumento do gasto público vai contribuir para a diminuição do
crescimento da dívida
públicabrasileira. “Vinte anos é o tempo que consideramos necessário
para transformar as instituições fiscais por meio de reformas que garantam que
a dívida pública permaneça em patamar seguro”, afirmam os ministros. Segundo
dados do Banco Central, a dívida pública brasileira chegou, em 2015, ao nível
de 66,2% do PIB.
O governo ignora, no entanto, que não existe unanimidade sobre o que é
um patamar seguro para a dívida pública no mundo. Há, sim, vários países com
uma dívida menor do que a brasileira: Argentina (56% do PIB em 2015) e Chile
(14% do PIB), entre eles.
Contudo, mesmo países mais desenvolvidos possuem dívidas
substancialmente maiores, como é o caso da Espanha (99%), EUA (106%), e o mais
extremo, o Japão, que tem uma dívida de 248% do valor de seu Produto Interno
Bruto.
Apesar das críticas, o Japão preferiu uma política de expansão monetária
à austeridade imposta na Europa. “Não há um número mágico a partir do qual a
relação dívida pública/PIB torna-se problemática. A dívida brasileira é tão
grande? Qual é o parâmetro para a definição de grande? Na verdade, os
economistas não se arriscam a definir um parâmetro ótimo para dívida pública,
simplesmente porque ele não existe”, afirma documento lançado em agosto deste
ano sobre a austeridade e a política fiscal no Brasil, por instituições como a
Fundação Friedrich Ebert Stiftung e a Fórum21.
É o que defende o economista Felipe
Rezende, Ph.D. e professor assistente do Departamento de Economia do Hobart e
William Smith Colleges, em Nova York. Ele foi um dos convocados pela Comissão
de Assuntos Econômicos do Senado Federal a debater sobre o assunto, no fim de
agosto, em uma sessão com integrantes do governo Temer.
“Esse tipo de debate foi realizado em
outros países que também passaram por um aumento muito forte dos déficits
públicos e da dívida pública. Nos países onde essa tentativa de ajuste fiscal
foi feita, falharam em promover a recuperação econômica em todos eles. O ajuste
fiscal, onde foi implementado, não gerou recuperação econômica”, defendeu
Rezende na ocasião, diante da equipe econômica do governo.
Na opinião do economista, o governo Temer
comete um “erro gravíssimo” no diagnóstico das razões da crise econômica
brasileira. A explicação para a solvência vem de outro lado. “Esta não é uma
crise do setor público, e sim do setor privado. Eu finalizei um trabalho este
ano sobre a situação das empresas do setor privado no Brasil. O estudo mostra
haver uma deterioração do balanço dessas companhias desde 2007”, alerta.
“As empresas privadas no Brasil tiveram
uma posição de endividamento líquido tão significativa que esse processo foi
revertido e colocou pressão sobre os déficits públicos. Como esperado em
momentos como esses, hoje o Brasil tem uma crise de solvência do setor privado.
É uma crise diferente das anteriores.”
O debate promovido pelo Senado sobre o assunto provocou reações na
Casa. “A proposta é tão anormal que nenhum economista ou professor
universitário com credibilidade se atreveu a defendê-la”, ironizou, em discurso
no Plenário, o senador Roberto Requião (PMDB-PR).
“No dia 16 de agosto, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado debateu
o assunto. Meirelles mandou dois funcionários de segundo escalão para defender
a proposta. Confrontados pelos professores convidados a fazer uma análise séria
do assunto, exibiram a grande fragilidade da PEC 241 e da visão econômica do
chefe”, disse.
Requião ainda chamou
a PEC 241 de “aberração” e disse que congelar os gastos públicospode levar o
País ao caos político e econômico. “Essa proposta tão absurda serve para
mostrar o grau de anormalidade política e institucional em que vive hoje o
País.”
Alvos: saúde e
educação
Além de um diagnóstico errado, a equipe
econômica de Meirelles deposita todo o sucesso da proposta na oneração de áreas
como educação e saúde. Ao anunciar a limitação de gastos, em meados de junho,
ao lado de Temer, o ministro da Fazenda classificou-a de “dura” e admitiu que o
foco era conter as despesas com saúde e educação, ambas vinculadas à evolução
da arrecadação federal.
O próprio texto da PEC explicita esse
objetivo. Como a ideia é colocar um teto de gastos para a saúde e a educação, a
proposta suspende, pelo mesmo período de 20 anos, a aplicação mínima definida
pela Constituição Federal nas duas áreas.
Esse montante passa a ser calculado com
a mesma regra que limita as despesas públicas, com correção pela inflação do
ano anterior. Dessa forma, as despesas gastas em saúde e educação deixam de
estar vinculadas às Receitas.
Isso revela a falta de sincronia ou
interesse do governo Temer com o programa aprovado nas urnas em 2014 e com os
reais interesses da sociedade brasileira. Uma pesquisa do Ibope, realizada em
2014 a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI), mostra que a saúde,
a segurança pública e a educação são, em ordem decrescente, os temas que
deveriam ser tratados como prioridade pelo governo federal, na opinião de
eleitores.
Para se ter uma ideia do peso dessas mudanças na prática, o Dieese fez
uma simulação para comparar os gastos que efetivamente foram empenhados em
saúde e educação nos últimos anos com os montantes que teriam sido
transferidos, caso a PEC 241 tivesse sido implantada no passado. A conclusão é
de que “os gastos teriam sido significativamente menores”.
No caso da educação, se a PEC estivesse valendo desde 2006, a redução do
valor destinado para a área seria de 55%, no período. Já em relação às despesas
com saúde, a redução seria de 33%. Em relação ao montante de recursos, a perda
na educação, entre 2006 e 2015, teria sido de 384 bilhões de reais e, na saúde,
de 290 bilhões. Esse valor corresponde a quase 120 vezes o custo do Programa
Mais Médicos.
Outro órgão que
analisou o tema foi o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Em Nota
Técnica, publicada neste mês, os técnicos da Diretoria de Estudos e Políticas
Sociais (Disoc) desenharam um cenário crítico que a PEC 241 pode causar no Sistema Único de Saúde (SUS).
Contrariando, inclusive, o presidente
do Ipea, Ernesto Lozardo, amigo de Temer e defensor da proposta publicamente, o
estudo mostra que a limitação dos gastos impactará negativamente no
financiamento e na garantia do direito à saúde no Brasil.
Mais que isso, o Ipea acentua que o
gasto com saúde tem efeito multiplicador no PIB e não o contrário, como tenta
argumentar a equipe econômica de Meirelles. “No Brasil, o valor adicionado
bruto das atividades de saúde foi responsável por 6,5% do PIB em 2013. No mesmo
ano, a atividade de saúde pública teve participação de 2,3% do PIB (Brasil,
2015). Nesse contexto, o gasto público com saúde coloca-se como importante
propulsor do crescimento econômico”, dizem os técnicos.
“O efeito multiplicador do gasto com
saúde no País foi calculado em 1,7, ou seja, para um aumento do gasto com saúde
de 1 real, o aumento esperado do PIB seria de 1,70 real.”
O economista da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e colunista de CartaCapital João Sicsú fez um cálculo
parecido com o do Dieese, mas projetado para os próximos anos. Partindo de um
cenário de estagnação da economia brasileira, com a PEC 241 em vigor, haverá
uma queda real de 6% no gasto per capita com educação e saúde no País.
Diante desse cenário, parlamentares de
oposição preparam um mandado de segurança contra a proposta no Supremo Tribunal
Federal. O eixo central é que a PEC 241 atenta contra cláusulas pétreas da
Constituição, como a de separação dos Poderes.
Além disso, interfere no Orçamento de
outros Poderes, como o Judiciário. Com uma redução tão drástica nos recursos de
despesas primárias, a proposta também pode levar, por consequência, a um
achatamento dos programas sociais, em detrimento de outros.
O economista Pedro Linhares Rossi resume: “É uma catástrofe, isso refaz
o pacto social. O que acontece hoje é uma demonstração de força. Eu acho
difícil isso passar. Eu não acredito na aprovação desse texto por piores que
sejam os nossos parlamentes. Mas essa PEC é demonstração de força política do
mercado, é feita para o mercado, e para beneficiar uma elite que não quer pagar
imposto”.
Fonte: Carta Capital http://bit.ly/2cTZJsI
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