Modernizar se tornou a palavra da moda, aquela em que todos se arvoram na condição de defensor, apóstolo ou praticante. Certamente por “desapego ao passado” ou simples marketing político, não mais se usa o vocábulo mudança, pois ele se confunde ...
POR CEZAR BRITTO | 01/06/2017 09:36
CATEGORIA(S): COLUNISTAS, DIREITOS
TRABALHISTAS, ECONOMIA
BRASILEIRA, OUTROS DESTAQUES
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Modernizar se tornou a palavra
da moda, aquela em que todos se arvoram na condição de defensor, apóstolo ou
praticante. Certamente por “desapego ao passado” ou simples marketing político,
não mais se usa o vocábulo mudança, pois ele se confunde com o termo oposição, ambos conhecidos nos debates, propagandas e
comícios eleitorais. A sedução substitutiva vocabular é justificada, assim,
pelo simples fato de que a expressão modernização está intimamente vinculada à essência
evolutiva da própria humanidade, a motivação que a conduziu para fora das
cavernas e descobrir o mundo.
Reconheço que quem
não está afeito às coisas da política, ou mesmo ao uso da gramática, fica
confuso diante dos exemplos contraditórios apontados como sinônimo de modernização, especialmente quando o grito retumbante que a alardeia brota da boca da elite que sempre
usufruiu o que agora acusa de velho e desbotado pelo tempo. Nesse caso, então, vale a pena ser mais precavido,
pois a nova expressão pode ter como significado fazer com que o combatido passado
se torne o presente recauchutado. É o que também se conhece como mudança involutiva, aquela em que se regride às condições críticas do
ontem, ressuscitando crises ou teses já superadas no avançar da história,
várias delas quedadas na Bastilha de 1789.
A proposta de reforma trabalhista que tramita no Senado Federal é o exemplo
pronto e acabado da modernização como
significado de mudança involutiva. Ou, em outras palavras, orenascimento da Idade Moderna (1453-1789). Ela não
pretende modernizar o Direito brasileiro, aproximando-o do Direito Social
europeu ou do sistema protetivo japonês. Não pretende revogar o nativo poder
patronal de demitir o seu empregado, retirando-lhe, em consequência, o seu
único mecanismo de sobrevivência. Tampouco busca estabelecer regra que coíba a
lucrativa política de desrespeito à legislação trabalhista, notadamente o fim
da prescrição que traga direitos não pagos e a proibição de acordos judiciais
que reduzem as parcas verbas restantes.
Não! A malsinada
reforma trabalhista retroage ao tempo da coisificação da pessoa humana, denunciado na Revolução
Francesa, praticado na Revolução Industrial do século 18, condenado na
Encíclica Rerum Novarum de 15 de maio
de 1891 e combatido nas barricadas e revoluções do século 19 e início do século
20. Ela revoga as conquistas da classe trabalhadora, fazendo página rasgada da
história o dia 8 de março de 1857, quando 126 tecelãs de Nova York foram
assassinadas porque reivindicavam melhores condições de trabalho. Também joga
na lixeira do tempo o 1º de maio de 1886, quando na cidade de Chicago a
repressão policial resultou na morte de seis trabalhadores e incontáveis
feridos. E no mesmo saco do esquecimento, os assassinatos de bravos brasileiros
que defenderam o trabalho digno, como o sapateiro Antônio Martinez, em julho de
1917, e o tecelão Constante Castelani, em maio de 1919.
Apenas para
exemplificar o desejo de retorno à Idade Moderna, se faz necessário apontar, em
sequência alfabética e sem maiores comentários, os primores neomodernistas:
a) extinção da
finalidade social do contrato laboral, fazendo valer a “autonomia da vontade
patronal” na celebração e interpretação da relação trabalhista;
b) restrição do
conceito de grupo econômico como responsável pelo ressarcimento da lesão
trabalhista;
c) possibilidade de
a negociação coletiva revogar ou reduzir direitos trabalhistas assegurados em
lei;
d) ampliação dos
casos de terceirização, desobrigando a observância do princípio da isonomia
entre os empregados de ambas empresas;
e) eliminação das
horas in itinere, não mais
integrando o deslocamento no conceito protetivo do contrato de trabalho;
f) restrição das
horas extras para após 36a hora semanal em regime parcial, permitindo a
sua compensação e o banco de horas individual;
g) eliminação do
intervalo de 15 minutos para as mulheres empregadas;
h) eliminação do
intervalo mínimo de uma hora para descanso e refeição;
i) regulamentação
do teletrabalho com direitos inferiores aos demais empregados e ausência de
pagamento por horas extras;
j) permissão de
fracionamento de férias;
k) tabelamento dos
danos morais em valores irrelevantes e em parâmetros em que a moral dos pobres
vale menos do que as dos ricos, no velho estilo das Ordenações Filipinas;
l) permissão do
trabalho de gestantes em atividades insalubres, salvo com atestado;
m) admissão da
fraude do empregado maquiado de prestador de serviços autônomos;
n) criação do
trabalho intermitente, também conhecido como “trabalhador de cabide”;
o) limitação da
responsabilidade patronal em caso de sucessão;
p)
descaracterização de diversas verbas de natureza salarial, não as incorporando
mais ao contrato de trabalho;
q) limitação da
possiblidade de equiparação salarial, substituindo localidade por empresa, além
de acabar com a promoção alternada de mérito e antiguidade;
r) relativização do
princípio da inalterabilidade contratual lesiva, eliminando a incorporação de
gratificação por tempo de serviço;
s) revogação da
obrigatoriedade de assistência do sindicato na rescisão, deixando à mercê
daquele que o demite o empregado que ainda precisa das verbas rescisórias para
sobreviver ao desemprego anunciado;
t) fim da
necessidade de negociação coletiva para demissão em massa;
u) autorização da
rescisão por mútuo consentimento;
v) possibilidade de
arbitragem para determinados empregados;
w) permissão de
representação do trabalhador por empresa, sem participação de sindicato; x)
determinação do fim da contribuição sindical obrigatória;
y) fim da
obrigatoriedade de o Ministério do Trabalho atuar no estudo da regularidade dos
planos de carreira;
z) criação da
quitação anual de todos os direitos, pagos ou não, sob a lógica, no país
dos desempregados, do “quitar ou ser demitido”.
O esgotamento da
ordem alfabética, entretanto, não implica no esgotamento das lesões
trabalhistas. Seguem outras pérolas:
a) eliminação da
constitucional ultratividade da norma coletiva;
b)
responsabilização do empregado por dano processual;
c) ameaça ao
empregado com possiblidade de se tornar devedor, mesmo quando vitorioso em
alguns dos seus pedidos, desde que sucumbente noutros;
d) restrição do
alcance de súmulas do TST;
e) estabelecimento
de prescrição intercorrente;
f) modificação do
ônus da prova, transferindo para o empregado novas responsabilidades
probatórias;
g) obrigação de
liquidação prévia da ação trabalhista, determinando a prévia contratação de uma
perícia contábil;
h) limitação dos
efeitos de revelia em direitos indisponíveis e impedimento de ajuizamento de
nova demanda antes de quitação de custas;
i) retirada do
protesto judicial como instrumento hábil à interrupção da prescrição;
j) admissão de
prescrição total dos direitos lesionados;
k) estabelecimento
da prescrição quinquenal para os trabalhadores e trabalhadoras rurais;
l) autorização de
homologação de acordo extrajudicial pelo Judiciário, sem a plena garantia do
direito de defesa;
m) eliminação da
execução de ofício pelo juiz;
n) utilização do
pior índice de atualização dos créditos trabalhistas (TR);
o) relativização do
instituto da Justiça gratuita para os empregados, inclusive para fins de
pagamento de honorários periciais e advocatícios;
p) eliminação da
viabilidade jurídica da acumulação de pedidos;
q) permissão para
que os créditos trabalhistas de empregados fixados em outros processos sejam
penhorados para garantir pagamentos de honorários;
r) restrição do
número de entidades que necessitam garantir o juízo para fins de defesa;
s) exigência de
transcrição de ED, de acórdão e até das notas de rodapé para se admitir
recursos de revista;
t) inauguração da
segregatória transcendência, permitindo inclusive que a decisão judicial a
respeito seja escassamente fundamentada;
u) término da
uniformização de jurisprudência em TRT;
v) possibilidade de
decisões monocráticas irrecorríveis em sede de agravo de instrumento; w)
eliminação da exigência de depósito recursal, substituindo-o por fiança
bancária ou seguro;
x) inclusão do
incidente de desconsideração da personalidade jurídica, mais restrito do que o
novo Código de Processo Civil (CPC);
y) aceitação da
arbitragem e dos planos de demissão voluntária ou incentivada (PDVs e PDIs)
como institutos de quitação de direitos;
z) aniquilamento
das bases fundantes da Justiça do Trabalho.
Não sendo as letras
do alfabeto latino, ainda que duplamente repetidas, suficientes para apontar
todas as violações propostas, encerro por aqui os apontamentos. Não antes sem
deixar de concluir que “modernizar tudo e todos” – o novo grito retumbante da elite brasileira – não passa de mera
propaganda nascida, financiada e defendida por aqueles que compreendem o
Direito do Trabalho como inimigo a ser vencido, pois empecilho ao lucro fácil e
não distributivo da riqueza entre todos aqueles que a produzem.
Afinal, a mudança involutiva proposta na
reforma trabalhista tem o sabor da
perda de direitos historicamente adquiridos e o gosto amargo da supressão do
conceito de trabalho como fator de dignidade da pessoa humana. O projeto que
cria a nova Consolidação das Lesões Trabalhistas faz-nos lembrar que a coisificação da pessoa humana, séculos depois, ainda encontra moradia no gélido
coração do capitalismo brasileiro.
Os neomodernistas do século 21, assumidamente, querem o renascimento da Idade Moderna.
* Advogado, integra o Conselho de Desenvolvimento
Econômico e Social (CDES) e preside a Comissão de Relações Internacionais da
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Foi presidente do Conselho Federal da OAB
e da União dos Advogados de Língua Portuguesa (Ualp). Mantém perfil no Twitter
no endereço @cezar_britto.
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