sábado, 4 de fevereiro de 2012

A ORIGEM DA PROGRESSÃO CONTINUADA

Por Waldyr Kopezky
Vou contar uma historinha que já contei aqui - mas sempre é bom relembrar:
Em 1994, encerrava-se um ciclo de dez anos que a UNESCO havia determinado para seu programa de auxílio para a erradicação mundial do analfabetismo. Desde 1984 (e pelos dez anos seguintes), o Brasil recebeu uma boa quantia anual do órgão das Nações Unidas para investir na sua rede de ensino público e torná-la mais eficaz, qualificando seus profissionais, modernizando sua estrutura e atraindo mais crianças para as salas de aula. Varios países ao redor do mundo também tiveram este estímulo por parte da UNESCO.
Porém, a partir de 1994 o programa passaria para sua fase dois - a de condicionar os repasses de dinheiro à apresentação pelos governos de dados estatísticos que comprovadamente mostrassem um avanço nos sistemas de ensino público do país - aumento de crianças na primeira série, médias de notas adequadas, diminuição na porcentagem de repetências, evasão de alunos e por aí vai.
O recém-eleito governo de FHC (e não por culpa dele, neste momento) não tinha em mãos resultados que mostrassem melhoras e bons números, em quase nenhum índice educacional - e corria o risco de ver a "torneira" da UNESCO fechar-se para o Brasil. Além disso, toda a rede de ensino público estava passando por mudanças profundas, fruto do novo processo de reorganização de responsabilidades das esferas de governo (mun., est. e federal) determinadas na recente Constituição Federal de 1988 e nas ainda mais recentes constituições estaduais (já aprovadas ou ainda em processo de formulação). O que fazer, então?
Numa reunião da presidência com vários membros do governo federal e dos estados, Mário Covas (gov. de SP) propôs uma solução mágica (coisa de político, mesmo!) para o iminente  fim dos recursos internacionais - mas que se revelaria uma catástrofe completa com o passar dos anos: a Progressão Continuada! Pegava-se um sistema de ensino consagrado, de um educador respeitadíssimo (Paulo Freire), com um conceito inovador e humanista (o Construtivismo) e implantava-se isso na rede pública. Ninguém iria se opor a isso - fossem educadores, gestores da área educacional ou políticos.
E foi feito. Com isso implementado, os índices de aprovação foram às alturas, os de repetência quase zeraram e as avaliações (notas) tiveram também um crescimento exponencial - o relatório anual do MEC à UNESCO apresentado sob o novo sistema mostrava resultados excepcionais, e o órgão viu nele a justificativa para prosseguir com o envio anual ao País da verba de auxílio contra o analfabetismo. Bom, né?
Não. Foi um horror: a implementação do sistema construtivista (excelente, conceitualmente) quebrou com um regime e um modus operandi de décadas que condicionava a aprovação a um esforço do aluno para atingir um nível nas provas regulares, mensurado por níveis (zero a dez, A a D, o que fosse); agora, os critérios eram subjetivos (insuficiente, regular, bom e muito bom) que eram dados não mais pelo índice de acertos em exames periódicos (que foram abolidos, pouco a pouco) mas também numa avaliação mais ampla do educador, que levava em consideração ainda outros dados muito menos mensuráveis (participação em aula, interesse, envolvimento, comparecimento, socialização, etc.).
Pior: tal mudança teria de ter sido feita com a preparação prévia dos educadores para este novo sistema - que abolia não só os critérios, mas também as ferramentas de pressão e persuasão dos professores para incutir em seus alunos a necessidade do estudo regular e sistemático (bem como do  necessário estímulo) para a superação das dificuldades e limites impostos pela instituição para a a passagem de ano. Todo mundo passava - não importava se havia aprendido ou não. Com o passar dos anos, tanto educadores quanto educandos começaram a nutrir pelo novo processo de ensino (e seus péssimos resultados efetivos) um desencanto que logo tornou-se indiferença e desdém.
O resultado dessa decisão foi que uma geração inteira de jovens foi irremediavelmente perdida para a nossa sociedade moderna; milhares de alunos passaram de ano sistematicamente sem saber sequer ler direito (houve uma matéria há pouco tempo na IstoÉ mostrando alunos da 8ª série em SP que não conseguiam ler as manchetes de um jornal) ou fazer uma simples conta de dividir. Do ponto de vista político, tal cenário era um ganho: tinham agora uma multidão de cidadãos iletrados que baseavam sua informação essencialmente em sistemas audiovisuais facilmente manipuláveis (rádio e TV), sem capacidade ou bagagem suficientes para discernir a realidade da informação apresentada ou as circunstâncias mais sutis da nova sociedade democrática recém-formada. Do ponto de vista social, isso era uma tragédia: essa multidão estava completamente fora do mercado formal de trabalho, constituindo-se num grupo que - mesmo estando próximo dos grandes centros e com o acesso aos aparelhos públicos de ensino e novas tecnologias (coisa que gerações predecessoras não tiveram acesso) - este não reunia qualificações para ascender para além das classes D e E da sociedade, condicionados a viver em agrupamentos humanos pífios (favelas) de condições sub-humanas, da mesma forma que seus pais e avós migrantes.
Gente, falei tudo isso para dizer que o sistema determinado pela Constituição de 1988 não tem retorno, tanto para a Educação quanto para a Saúde públicas. Pelo que foi perdido, vai levar um tempo para ser reconstituído. Abs.

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