Por: IHU On-Line.
João Vitor Santos | 04 Dezembro 2017.
A escola deve ser o espaço livre para a manifestação
da diversidade, sem qualquer tipo de repressão. Esse é o conceito que deve ser
perseguido, segundo o professor e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro.
“O papel básico da escola, de qualquer ordem que seja, é aceitar a pessoa na
sua diversidade. A escola não deve doutrinar em nenhuma direção”, complementa.
Segundo ele, esse também deve ser o princípio da Base Nacional
Comum Curricular - BNCC.
Entretanto, muitas discussões acabam se dando de forma enviesada, contaminadas
pela polarização e pela inaptidão ao diálogo que parecem tomar o Brasil de hoje. “Você tem uma atuação de grupos que
pedem que a educação seja exatamente o que ela não pode ser. São
movimentos que dizem ser contrários à doutrinação, mas que são extremamente
doutrinadores”, denuncia.
Renato exemplifica com os debates em torno das questões de gênero e as ações do grupo defensor da ideia
de escola
sem partido. Muito mais do que qualificar o debate sobre educação,
querem fazer valer apenas sua visão de mundo. “Educar, na verdade, é abrir para
o mundo. Significa fazer a pessoa sair de seu mundo fechado e abrir-se para um
mundo mais amplo, mais abrangente”, contrapõe. A origem disso seriam as
polarizadas disputas
políticas que colocam, de um lado, os
opositores e, de outro, defensores do governo petista, ambos fechados em si.
“O Brasil está rachado em torno de inimizades”, avalia.
“Não temos alternativa. Temos que recuperar o diálogo no Brasil e temos que ser capazes de avançar neste
país”. E Renato vê a educação como
um caminho possível para esse avanço. “Se nossos alunos não tiverem espírito
crítico, não tiverem conhecimento de mundo, não se abrirem para a diversidade,
a nossa economia não vai melhorar. Precisamos de pessoas que pensem, e a
educação ajuda a pensar”, analisa.
Na entrevista, concedia por telefone
à IHU On-Line, o ex-ministro também avalia o processo de
montagem da BNCC, iniciada em sua gestão. “O erro que cometemos foi
não termos acompanhado muito de perto o trabalho de cada comissão; com isso,
tivemos problemas”, reconhece.
A Base Nacional Comum Curricular é um documento de caráter normativo que
define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos
os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica.
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Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – Todo o processo das discussões para a formação da Base Nacional Comum
Curricular - BNCC iniciou ainda na sua gestão no Ministério da Educação. Como o
senhor avalia esse processo que culmina nessa proposta levada agora ao Conselho
Nacional de Educação?
Renato
Janine Ribeiro – A Base Nacional Curricular foi estabelecida pelo Plano
Nacional de Educação, que foi votado e sancionado pela
presidente Dilma
Rousseff em junho de 2014. E a Base deveria ter sido entregue ao Conselho Nacional de Educação, para sua aprovação final, dois anos depois, ou
seja, em junho de 2016. No período desde a entrada em vigor da lei, o Plano
Nacional de Educação, até a minha posse em abril do ano seguinte, nada foi
feito nessa direção. No final de abril, eu instalei as comissões que iam montar
a base.
Alguns critérios: presença forte de
professores que estavam em sala de aula, professores com experiência, para,
assim, evitar um saber que caísse de cima para baixo sobre as pessoas. A ideia
era fazer que aqueles que entendem da aula, dos alunos, que sabem das
dificuldades e possibilidades, pudessem eles mesmos montar a base. O trabalho
foi conduzido com muito entusiasmo pelo secretário de Educação Básica da
época, Manuel
Palácios [1], mas creio que nós erramos
ao não colocar uma pessoa representando o Ministério da Educação - MEC em cada uma das 39 comissões, ou, pelo menos,
em cada um dos 13 nomes diferentes que as comissões tinham. Deveríamos ter
pegado o número de componentes curriculares, os quais muita gente conhece pelo
nome de “matéria” ou “disciplina”, que fazem parte do Ensino Médio, onde há o maior número – no Ensino Fundamental I há poucos componentes, no Fundamental IIaumenta e no Ensino Médio chega a 13 – e em cada um
desses grupos colocar um representante do MEC,
dialogando, verificando se eles não estavam se afastando dos princípios básicos
que devem reger a Base. Isso porque é muito difícil, mesmo quando você diz
exatamente o que tem de ser feito, as pessoas prestarem atenção, entenderem e
respeitarem.
Mas isso não foi feito. Resultado: a
primeira versão, que foi entregue em setembro, ainda na minha gestão, era muito
longa, e a segunda versão, que já foi entregue na gestão do Mercadante [2], tinha dobrado de tamanho. Na verdade,
era preciso ter um tamanho bem mais conciso, porque a Base não pode entrar em detalhes, ela é justamente
uma base, um currículo
comum ao país. Tem que dizer, por
exemplo, quando se vai estudar equação de segundo grau ou, no caso de História,
quando se vai estudar a Idade Média ou Idade Moderna, ou Brasil Colônia. São
esses os pontos cruciais, e não mil detalhes de como vai ser dada a aula. A
própria metodologia não pode entrar na base, porque ela é questão
de autonomia da escola, de autonomia do professor, de autonomia da rede. O erro
que cometemos foi não termos acompanhado muito de perto o trabalho de cada
comissão; com isso, tivemos problemas. Mercadante apontou
muitos problemas da área de gramática, e eu vi os problemas da área de
História.
IHU
On-Line – Num país de dimensões continentais como o Brasil, com realidades
regionais tão distintas, por que é importante a constituição de uma base
curricular em comum?
Renato
Janine Ribeiro – Em quatro componentes, nós
pensamos que era interessante uma diversidade regional grande. São eles: História, Geografia, Português e Biologia.
Se pensarmos o Brasil dividido por suas bacias hidrográficas, que é
um tema da Geografia, veremos que, conforme a bacia, temos animais e plantas,
tema da Biologia, muito diferentes entre si. A Biologia já via a diversidade, e
a Geografia também via a diversidade. História e Português também podem
destacar as diversidades regionais, como é óbvio. Nessas quatro áreas, não sei
se 40% dos conteúdos mas possivelmente 30%, ou um número perto desse, deveriam
ser fixados em cada região.
Enfim, em certas matérias que não são
tão exatas quanto as ciências ditas exatas, realmente poderia haver uma parte
regional importante. Mas não há como você não estudar História universal, não
há como não estudar as bases da Biologia. Contestar o currículo comum a partir disso é um pouco de ingenuidade ou
de desconhecimento do assunto.
IHU
On-Line – Especificamente com relação ao campo das ciências humanas, na
disciplina de História, o senhor
criticou a BNCC por não atender a um repertório básico.
Gostaria que o senhor recuperasse e justificasse a sua crítica.
Renato
Janine Ribeiro – Há o célebre poema de Brecht [3]: quem sabe quem são os artesãos que
construíram as pirâmides e os muros de Tebas? Fala-se muito dos reis, mas não
se fala desses artesãos. Esse ponto é crucial, pois não se pode ter uma visão
centrada nos reis. Outro ponto decisivo é estudar a História do Mundo, mesmo, e não uma história eurocêntrica, como era
praxe no passado. Ora, se olharmos os bons livros de História que já estão no
mercado e que o MEC comprava – eu pedi que o Fundo Nacional de Desenvolvimento
Escolar me mandasse os melhores livros
de escola e vi que eram muito bons nesse tocante –, veremos que nenhum deles
era só de faraós, nenhum deles ignorava Ásia, África ou América pré-colombiana. Então, isso já estava sendo conduzido. Mas, ao
invés disso, tivemos um projeto que era caótico. Não dava para entender o que
eles queriam dizer.
Alguns acharam que era um projeto
esquerdista, mas não era. Por exemplo, no caso do Brasil, nós temos uma periodização da História que muitos
associam a Celso
Furtado[4], que é o Ciclo do Pau Brasil, do Açúcar, do Ouro, do Café. E essa é uma cronologia. Mas não é uma cronologia
boba, é uma cronologia inteligente, e isso não foi aproveitado. Não apareceu
nada que fosse cronologia. Só apareceu, no meio do Ensino Médio, um ano de História da África. Era a única que tinha que ser estudada, porque
estava na lei... Mas, se dependesse da equipe, talvez nem isso tivesse havido.
Foi um grande equívoco na área de História e
pedi que refizessem, mas se recusaram a refazer e aí divulgamos essa parte,
alertando que não tínhamos responsabilidade pelas propostas, que o MEC tinha
dado ampla autonomia – quase sempre com bons resultados – a fim de que a
sociedade discutisse livremente a versão inicial da Base.
IHU
On-Line – Entre os pontos mais polêmicos e discutidos da última versão da BNCC
estão o Ensino Religioso e questões de gênero. Como o senhor observa esses dois
pontos?
A escola não deve
encaminhar ninguém para nenhuma direção, mas deve dar espaço para a diversidade
se manifestar sem repressão
Renato
Janine Ribeiro – O entendimento de muitas
pessoas, nas quais me incluo, é de que o Ensino
Religioso não deve ser, quando obrigatório, de proselitismo ou
de catequese. Deve ser um ensino sobre esse fenômeno extremamente rico e
complexo que é a religião. Deve ser um ensino que foque a espiritualidade, que
foque diferentes religiões, e faça a pessoa conhecer um pouco de toda essa
discussão que é extremamente rica.
Afinal, há várias religiões que têm
em comum a transcendência. Três religiões são chamadas religiões do livro, os
grandes monoteísmos – que têm esse nome porque se referem a escrituras sagradas
transmitidas pelo próprio Deus aos seus fiéis: judaísmo, cristianismo e islamismo. Os três somados incluem, muito provavelmente, a
maior parte da população mundial. Mas há outra religião bastante forte, o budismo, da qual o papa João Paulo II [5] até dizia que era uma religião ateia, porque
não tem exatamente um deus, menos ainda um deus supremo. Temos ainda os politeísmos, que são fenômenos muito diferentes. Fazer com que
os alunos tenham conhecimento deles é muito importante, porque isso pode ajudar
na sua formação espiritual. Do ponto de vista das religiões, aliás, hoje a
convergência se dá muito no aspecto ético.
Desde que o papa João XXIII [6] convocou o Concílio
Vaticano II [7], que se reuniu no começo dos anos 1960, houve
um processo de diálogo fantástico entre as grandes religiões, o assim
chamado ecumenismo, pelo qual, por exemplo, os católicos pararam de
amaldiçoar durante a missa os judeus. Também pararam de dizer que praticantes
de outras vertentes cristãs, ou de outras religiões, iriam direto para o
inferno, e começaram a encontrar pontos comuns. O principal ponto de
convergência dessas várias religiões é a questão ética. Não é sequer a questão
de todos aceitarem um criador, um deus único, porque há religiões, como o
budismo, que não têm o criador e há religiões, como asafro-brasileiras, que não são monoteístas, mas há uma convergência
muito forte na questão do Bem, na questão da ética etc. Isso é muito
interessante, vale a pena estudar.
Gênero
Quanto às questões
de gênero: o papel básico da escola, de qualquer ordem que seja, é
aceitar a pessoa na sua diversidade. A escola deve ser acolhedora, ela não pode
ser discriminadora. Essa é a questão crucial. Obviamente a escola não deve
doutrinar em nenhuma direção, mas deve dar espaço para a diversidade se
manifestar sem repressão.
IHU
On-Line – Outro ponto que gerou muitas críticas ao Ministério da Educação foi a
antecipação do período de alfabetização completa das crianças. O que está em
jogo e quais os limites dessa proposta?
Um volume muito
alto de analfabetos é extremamente preocupante porque mais ou menos condena as
crianças a um futuro mais pobre
Renato
Janine Ribeiro – A alfabetização é uma questão muito complexa. Nós temos um
grande sucesso no Ceará, onde o governo Cid Gomes [8] desenvolveu um projeto muito bom, já
iniciado em 2007, de alfabetização
na idade certa. Isso faz com que as escolas públicas assegurem que, aos oito anos, até o final do
terceiro ano do Ensino
Fundamental, as crianças saibam ler, escrever e
fazer as quatro operações básicas de matemática. Significa que são três anos
para uma escola pública atender esse objetivo da alfabetização integral na
idade certa. Mas mesmo isso está muito difícil
de se conseguir no Brasil como um todo. Os dados da Avaliação Nacional de Alfabetização -
ANA, de 2015, indicavam que 22% desses
alunos não sabiam ler, 35% não sabiam escrever de maneira plenamente
satisfatória e 57% não dominavam a matemática necessária para essa faixa de
idade. E esse volume muito alto de analfabetos é extremamente preocupante,
porque mais ou menos condena as crianças a um futuro mais pobre do que aquelas
que acompanharam a formação desejada.
O Brasil não está conseguindo alfabetizar em três anos.
Mesmo assim, considero que a meta de obter alfabetização em dois anos é muito
boa. Nesse ponto, estou de acordo quanto a se procurar fazer isso ao longo dos
seis e sete anos de idade. Agora, o problema é que se não conseguimos
alfabetizar em três anos, apesar de todo empenho que o governo anterior colocou
nisso, reduzir para dois anos exigirá ainda mais empenho. E, nesse sentido, o
Brasil carece de várias competências. Inclusive porque, desde que acabou o
Curso Normal, que era um curso de nível médio, e a formação dos professores passou a ser de nível superior, a questão
da alfabetização foi um tanto desconsiderada. Nós temos que
retomar a questão da alfabetização como decisiva. Aliás, isso já foi iniciado
tanto com o Pacto
Nacional pela Educação na Idade Certa,
adotado em 2013, quanto pela Avaliação Nacional da Alfabetização.
IHU
On-Line – Como imagina que a BNCC vai impactar a formação de professores? Quais
os maiores desafios para a formação docente em nosso tempo?
Renato
Janine Ribeiro – A Base realmente é para a formação
de professores e para formação de material didático. Na hora em
que você decide o que os alunos devem aprender em cada época de sua vida,
também decide como devem ser formados os professores. Por exemplo, se
afirmamos, no caso da História, que não pode ser apenas a História Ocidental, mas
tem que ser a história do mundo inteiro, e não pode ser apenas a história dos
poderosos, mas tem que ser a história dos povos, é claro que sinaliza para as
faculdades que formam professores de História o caminho que deve ser seguido
para ensinar seus alunos. Esse é o ponto na formação.
Os gestores, nesse caso estou falando
do MEC, dos secretários municipais e estaduais de
Educação, todos os quais ocupam seus cargos indicados por governantes eleitos –
e que, portanto, têm um dever importante em relação à população e à
legitimidade democrática por terem sido indicados a partir de uma escolha do
povo. Eles querem que se aprenda mais como ensinar. O problema sério que gera
muita discussão é que, na formação de professores, nem sempre se aprende como ensinar, seja
História, Geografia ou Filosofia. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Capes fez um trabalho muito bom nos
últimos anos com os chamados “PROF’s”,
que são mestrados profissionais criados para formar melhor os professores. Isso
está caminhando, mas há uma discussão frequente com algumas faculdades de
Educação, que não concordam muito com isso. Esse é um ponto que precisa ser
resolvido.
Material
didático
Há, ainda, outro aspecto que não foi
mencionado na pergunta, mas que tenho que destacar: o material didático. Esse material tem que ser reformulado com as
ênfases novas que a base vai indicar e também com o seu suporte eletrônico. Não
podemos pensar só no material didático em papel. Provavelmente o mais adequado,
especialmente nos primeiros anos vindouros, seria termos o livro em papel e
também tudo isso num tablet, o que trará inúmeras vantagens. No tablet é possível ter links para ampliar os
conhecimentos, podem ocorrer atualizações do material, pode haver uma
referência a tudo que representa exercício e conteúdo adicional.
O tablet é muito rico, mas substituir o papel
pelo tablet seria muito arriscado, até porque não sabemos
ainda qual será a reação dos alunos, em que medida a paixão deles pelo
eletrônico vai ser bem-sucedida ou não. Veja o livro eletrônico: o Kindle não emplacou. O e-book está há dez anos no mercado e não passa de
10% das vendas desse mercado editorial, mesmo nos Estados Unidos, Europa etc.
Não podemos correr riscos tolos; o mais simples seria manter o papel,
acrescentarmos o tablet e depois verificarmos como está funcionando,
em que faixas etárias, em que matérias, em que regiões do país. Isso porque,
pelo menos quando eu era ministro, não havia ainda pesquisas conclusivas,
nacionais ou internacionais, sobre a preferência dos alunos, conforme a série,
por material em papel ou em tablet.
Vamos ter que experimentar e aprender o que é melhor.
IHU
On-Line – Quais os maiores avanços e limites do Brasil no campo da Educação nos
últimos anos?
Cotas não tiraram o
acesso de ninguém à universidade
Renato
Janine Ribeiro – Os avanços da Educação no Brasil, nos últimos anos, foram inúmeros. O Brasil, durante os governos Lula e Dilma, não só deu continuidade a um êxito do governoFernando Henrique, que foi a universalização do Ensino Fundamental, como também aumentou esse Ensino Fundamental, que era de oito anos e passou para nove. E isso
ainda conseguindo manter a universalização nesse ano suplementar, fazendo com
que o Ensino Fundamental comece aos seis anos de idade e não mais aos sete.
Também ampliou a obrigatoriedade para a pré-escola,
começando aos quatro e cinco anos de idade, o Ensino Médio de 15 a 17, faixas em que conseguiu mais de
80% de matrícula. Criou, ainda, o piso nacional de salários, melhorando o
pagamento de um bom nível de professores; criou o Programa Integrado de Bolsa de
Iniciação à Docência - Pibid,
estimulando os alunos de graduação a se tornarem professores na rede pública;
criou indicadores poderosos da qualidade da educação, dos quais o Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica - Ideb é o mais
conhecido, criou o Exame
Nacional do Ensino Médio - Enem,
que também universaliza toda a aferição da conclusão do Ensino Médio, bem como a entrada no Ensino Superior federal e, muitas vezes, privado. E, para concluir a
parte daEducação
Básica, o Ideb mostra que foi melhorando a qualidade da
educação, apesar de muita gente ser pessimista e falar coisas exageradas.
Agora, ele foi mais bem-sucedido na
expansão do nível Superior. Tínhamos 100 mil vagas de ingresso por ano no Ensino
Superior público e passamos para 230 mil, mais que dobramos.
Isso, por sinal, veio junto com o programa de cotas que, ao contrário do que
muita gente pensa, não são cotas étnicas. São cotas, antes de mais nada, para a
escola pública. Metade das vagas nas instituições federais é oferecida para
escolas públicas. Ninguém foi prejudicado. Cotas não tiraram o acesso de
ninguém à universidade, porque as vagas mais que dobraram. E essa ampliação do
Ensino Superior também se deu com a criação de 18 universidades novas, elevando
o número para 63.
Limites
Foi mais fácil
demandar esforços gigantescos, foi mais fácil conseguir expandir o Ensino
Superior do que mexer na Educação Básica de uma maneira radical
Um upgrade importante foi feito nas
antigas escolas federais de Ensino Técnico,
que viraram Institutos
Federais de Ciência e Tecnologia –
hoje são 38, e com um bom contingente de alunos. Mas tudo isso mostra também
qual o grande limite. Apesar de demandar esforços gigantescos, foi mais fácil
conseguir expandir o Ensino
Superior do que mexer na Educação Básica de maneira radical. E isso tem muitas razões.
O Ensino Superior é menor, seja ele qual for. Compare com o Ensino Médio, com seus 8 milhões de alunos, dos quais 7 milhões
vêm dos estados. Mas tem que haver uma mudança no Ensino Médio. É o que está
sendo feito pelo atual governo, mas com alguns equívocos.
Há o equívoco de gestão, que é mudar
as matérias que serão estudadas no meio do segundo ano. Significa que haverá
professores ociosos, sem carga horária na primeira metade do ano, e outros com
o mesmo problema na segunda metade, ao mesmo tempo em que haverá professores
que darão mais aulas no primeiro semestre e outros que darão mais aulas no
segundo semestre. Esse é um problema de gestão.
Ainda há outro grande problema. As
cinco áreas de ênfases: Linguagens, Ciências Humanas, Ciências da Natureza,
Matemática e Ensino Técnico não compõem cinco tipos de cursos possíveis. Elas
compõem talvez três. Talvez Técnico, talvez Humanas junto com Linguagens,
talvez Matemática junto com Ciências da Natureza. E não está claro como tudo
isso vai funcionar. Há o risco de que várias matérias não sejam lecionadas em
nenhuma escola de uma cidade ou mesmo de uma região. Ainda, se não houver
número de alunos suficientes para formar duas turmas, talvez seja uma turma só
que se forme. Então, há problemas aí. O que é certo é que 13 matérias no Ensino Médio não dá.
E tenho insistido: o Ensino
Médio não pode ter 13 matérias que são introduções aos cursos
de graduação com o mesmo nome. Filosofia, por exemplo, não pode ser um resumo
do curso de graduação de Filosofia. E nem Física, nem Química, nem História.
Tem que ser matéria útil, adequada para o aluno dessa idade. E isso é uma evolução
que vai depender da base curricular do Ensino Médio. Eu tenho um pouco de
receio quanto a isso, porque não vejo muita gente disposta a pensar nessa linha
que estou expondo, que me parece a mais razoável.
IHU
On-Line – Vivemos um tempo de disputas polares, contexto em que o tema da
Educação passou a ser discutido por qualquer pessoa e, muitas vezes,
confundindo políticas educacionais e ideologia. O senhor chegou a declarar que
o problema é que pessoas que detestam Educação estão discutindo o tema. Como compreender
esse cenário? E qual a questão de fundo desses debates?
Temos
a atuação de grupos que pedem que a educação seja exatamente o que ela não
pode ser
Renato
Janine Ribeiro – Estou terminando um livro sobre
minha experiência no Ministério
da Educação e há uma parte em que discuto
quem são os atores
da Educação. Entre os atores da Educação temos
os gestores públicos, o MEC,
as secretarias estaduais e municipais de Educação, os institutos de pesquisa
privados que procuram ajudar e dialogam bem com o setor público e temos os
professores e os funcionários, pensando sobretudo na rede básica, que é mais
numerosa, que têm um diálogo com o setor público mais difícil e, às vezes,
tenso.
É uma situação que não é fácil, que
tem que ser melhorada, tanto com melhor qualificação de professores e
funcionários quanto com melhor remuneração. Agora, há um ator, que são os pais dos alunos, que está muito por fora da discussão educacional. Isso porque os pais, na maior parte, tiveram uma
educação inferior à que os filhos estão tendo – porque, cada vez mais, crianças
de um perfil socioeconômico que nunca ia à escola estão estudando – ou porque
os pais não sabem do que se trata. Eu sempre defendi a participação ativa dos
pais, porque são eles que vão cobrar que o governo dedique mais empenho à
educação e são eles que também vão cobrar dos professores se houver uma greve
que se alongar e prejudicar os filhos. Então são os pais, no meio dessa
discussão, que podem praticamente resolver.
Entretanto, quando a participação dos
pais começou a ocorrer, foi através de dois temas que, a meu ver, são contra
a Educação. O primeiro foi o combate à
“ideologia de gênero”, quando os planos de Educação estavam sendo discutidos, e, mais
recentemente, o grupo escola
sem partido. Assim, há uma atuação de grupos que pedem que a Educação seja exatamente o que ela não pode ser.
Educar em latim vem de “ex” mais “ducere”,
que quer dizer “sair de dentro para fora”. Esse é o significado literal de
educar. Educar é abrir para o mundo. Significa fazer a pessoa sair de seu mundo
fechado e abrir-se para um mundo mais amplo, mais abrangente.
Portanto, é óbvio que a pessoa vai
descobrir que, além dos heterossexuais, há homossexuais, há outras orientações
sexuais. É óbvio que a pessoa vai descobrir que os fenômenos sociais e mesmo
naturais têm interpretações. É óbvio que as pessoas vão sair do universo apenas
da família ou do grupo ao qual pertencem. A vida é assim, e a educação, na
verdade, é o que melhora a vida. Ao invés de você aprender isso apenas porque
foi passando a vida, você aprende segundo a ciência, com bons professores,
conhecimento e tudo o mais.
Daí a minha preocupação com esses
movimentos que perdem o foco do que é educação.
Eles levam a uma situação curiosa. Eles dizem ser contrários à doutrinação, mas
são extremamente doutrinadores. Querem que uma doutrina tradicionalpermaneça. Isso é ruim para a democracia e é ruim para a economia, porque se nossos
alunos não tiverem espírito crítico, não tiverem conhecimento de mundo, não se
abrirem para a diversidade, nossa economia não vai melhorar. Precisamos de
pessoas que pensem, e a educação ajuda
a pensar. Não se pode ficar no conformismo, na repetição.
IHU
On-Line – Como superar essa pouca disposição para o diálogo, uma das marcas de
nosso tempo, tanto no Brasil como no mundo?
Não temos
alternativa. Temos que recuperar o diálogo no Brasil e temos que ser capazes de
avançar neste país
Renato
Janine Ribeiro – Essa questão está muito
difícil, o Brasil está muito dividido, se
fraturou pelo ódio nos últimos anos, por causa de política. Um
lado significativo da opinião pública se opôs radicalmente ao governo eleito em
2014, levando a sucessivas manifestações na rua e a sua destituição.
Destituição que também se deu pelo fato de que aqueles que foram beneficiados
mais pelos programas dos governos petistas ficaram insatisfeitos com a maneira
como a presidente Dilma lidou com a crise econômica depois da sua reeleição, uma vez que ela nem
explicou direito o que estava acontecendo e foi mudando as políticas. O governo
estava muito fraco e essas pessoas adquiriram um ódio que parece ser mantido,
em boa parte, em resposta ao que os 12, 13 anos de governo petista representaram.
Por outro lado, as pessoas que
apoiaram o governo eleito e que se opõem às políticas do governo atual por
considerá-las ilegítimas, porque são políticas exatamente opostas à que foi
votada em 2014 e também porque veem o retrocesso em muito do que diz respeito
ao conteúdo da educação, ao respeito dos costumes diferentes etc., essas
pessoas também não sentem disposição para o diálogo com os inimigos de ontem e
que continuam sendo inimigos hoje.
Assim, o Brasil está rachado em torno de inimizades. Amizades
pessoais se romperam, pessoas não apenas deletaram o outro do Facebook, mas de
suas vidas. Como essa situação vai ser resolvida? Eu não sei, vai ser difícil,
vai ser demorado, mas não temos alternativa. Temos que recuperar o diálogo no Brasil e temos que ser capazes de avançar neste
país. A educação pode dar uma ajuda nisso, porque um dos
pontos que pode melhorar o diálogo é fazer as pessoas se tornarem mais aptas a
ouvir os argumentos das outras. Não apenas repetir como papagaios, não gritar.
Por isso acho que liberdade
de expressão só faz sentido quando há
diálogo. A liberdade de expressão sem diálogo é estéril. Não é que não deva
haver liberdade de expressão! Ela deve ser preservada, mas a finalidade dela
não é ter dez pessoas gritando, cada uma sozinha e nenhuma escutando. A
finalidade dela é as pessoas dialogarem, conversarem, se respeitarem, se
corrigirem, caminharem juntas, firmarem acordos, compromissos e, com isso,
melhorarem o mundo.
Notas:
[1] Manuel Palácios: professor da Universidade Federal de Juiz de Fora
- UFJF, membro titular do Fórum Nacional de Educação. É graduado em Engenharia
de Telecomunicações pelo Instituto Militar de Engenharia, com mestrado em
Ciência Política e doutorado em Sociologia pelo Instituto Universitário de
Pesquisas do Rio - IUPERJ. Na UFJF, foi diretor da Faculdade de Educação e
Pró-reitor de Planejamento. Já esteve no MEC, atuando na Secretaria de Ensino
Superior. Foi nomeado secretário de Educação Básica pelo ministro Cid Gomes e
mantido pelos ministros Renato Janine Ribeiro e Alozio Mercadante. (Nota
da IHU
On-Line)
[2] Aloizio Mercadante Oliva (1954): economista e político brasileiro, foi
um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores - PT. Foi senador pelo estado de
São Paulo entre 2003 e 2010. De 2011 a 2012 foi Ministro da Ciência, Tecnologia
e Inovação do Brasil, e, em 2012 tornou-se Ministro da Educação. Em 2014,
tornou-se Ministro da Casa Civil. Com a reforma ministerial do governo Dilma
Rousseff em outubro de 2015, voltou a ser Ministro da Educação, permanecendo no
cargo até o afastamento da presidente. (Nota da IHU On-Line)
[3] Bertold Brecht (1898-1956): escreveu poesia, teatro, ensaios
e roteiros de cinema, lutando durante toda a sua vida pelos oprimidos. Assumiu
uma clara posição de esquerda e procurou colocar a luta de classes no palco,
utilizando-se da dialética. (Nota da IHU On-Line)
[4] Celso Furtado (1920-2004): economista brasileiro, membro do
corpo permanente de economistas da ONU. Foi diretor do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
e membro da Academia Brasileira de Letras. Algumas de suas obras são A economia
brasileira (1954) e Formação econômica do Brasil (1959). Confira a edição 155 da IHU On-Line que aborda a
obra de Furtado. (Nota da IHU On-Line)
[5] Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo Pontífice da Igreja
Católica Apostólica Romana e soberano da Cidade do Vaticano de 16 de Outubro de
1978 até à sua morte. Teve o terceiro maior pontificado documentado da
história, reinando por 26 anos, depois dos papas São Pedro, que reinou por
cerca de trinta e sete anos, e Pio IX, que reinou por trinta e um anos. Foi o
único Papa eslavo e polaco até a sua morte, e o primeiro Papa não italiano
desde o neerlandês Papa Adriano VI em 1522. João Paulo II foi aclamado como um
dos líderes mais influentes do século XX. Com um pontificado de perfil
conservador e centralizador, teve papel fundamental para o fim do comunismo na
Polónia e talvez em toda a Europa, bem como significante na melhora das
relações da Igreja Católica com o judaísmo, Islã, Igreja Ortodoxa, religiões
orientais e a Comunhão Anglicana. (Nota da IHU On-Line)
[6] Papa João XXIII (1881-1963): nascido Angelo Giuseppe
Roncalli. Foi Papa de 28-10-1958 até a data da sua morte. Considerado um papa
de transição, depois do longo pontificado de Pio XII, convocou o Concílio
Vaticano II. Conhecido como o "Papa Bom", João XXIII foi canonizado
em 2013 pelo Papa Francisco. (Nota da IHU On-Line)
[7] Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-1962 pelo papa João XXIII.
Ocorreram quatro sessões, uma em cada ano. Seu encerramento deu-se a 8-12-1965,
pelo papa Paulo VI. A revisão proposta por este Concílio estava centrada na
visão da Igreja como uma congregação de fé, substituindo a concepção
hierárquica do Concílio anterior, que declarara a infalibilidade papal. As
transformações que introduziu foram no sentido da democratização dos ritos,
como a missa rezada em vernáculo, aproximando a Igreja dos fiéis dos diferentes
países. Este Concílio encontrou resistência dos setores conservadores da
Igreja, defensores da hierarquia e do dogma estrito, e seus frutos foram, aos
poucos, esvaziados, retornando a Igreja à estrutura rígida preconizada pelo
Concílio Vaticano I. A revista do Instituto Humanitas Unisinos – IHU publicou
na edição 297 o tema de capa Karl
Rahner e a ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, bem como a edição
401, de 3-9-2012, intitulada Concílio
Vaticano II. 50 anos depois, e a edição 425, de 1-7-2013,
intitulada O Concílio Vaticano II como
evento dialógico. Um olhar a partir de Mikhail Bakhtin e seu Círculo.
Em 2015, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU promoveu o colóquio O Concílio
Vaticano II: 50 anos depois. A Igreja no contexto das transformações
tecnocientíficas e socioculturais da contemporaneidade. As repercussões do
evento podem ser conferidas na IHU
On-Line 466, de 1-6-2015. (Nota da IHU On-Line)
[8] Cid Ferreira Gomes (1963): é um engenheiro civil e político
brasileiro. Foi filiado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB),
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Partido Popular Socialista
(PPS), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Republicano da Ordem
Social (PROS). Atualmente, é filiado ao Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Foi governador do estado do Ceará por dois mandatos. (Nota da IHU On-Line)
Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/573943-base-nacional-comum-curricular-bncc-num-brasil-sem-dialogo-escola-vira-arena-para-disputas-entrevista-especial-com-renato-janine-ribeiro
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