domingo, 27 de novembro de 2011

UM TREM FORA DE MODA

Terceirização, subcontratação e trabalho escravo: ou as empresas mudam sua prática e se adequam ao século 21, ou adaptam as leis ao século 19
Por: Maurício Hashizume
Publicado em 25/11/2011

Um trem fora de moda
Sem direitos: imigrantes trabalham em oficinas clandestinas contratadas pela Zara (foto: © Bianca Pyl/Repórter Brasil)
A marca de roupas e acessórios Zara pertence ao espanhol Inditex, considerado o grupo têxtil mais valioso do mundo. Por isso correu o planeta a notícia do envolvimento da grife com a exploração de trabalho escravo no Brasil. Famílias de imigrantes sul-americanos sem registro legal foram encontradas por agentes da fiscalização trabalhista em duas oficinas de costura escondidas, precárias e improvisadas em plena cidade de São Paulo. A operação ocorreu no final de julho. Condições degradantes, jornadas exaustivas diárias de até 16 horas, cerceamento de liberdade e até trabalho infantil compunham o quadro.
Proporcional à produção individual, a remuneração não passava de R$ 2 por peça costurada. Após os famigerados descontos, alguns vencimentos mensais não atingiam sequer o salário mínimo, de R$ 545 (muito menos o piso da categoria, de R$ 676), em contraste com os altos preços cobrados por vestimentas à venda nas lojas da Zara espalhadas pelo mundo. Foram registrados ainda fortes indícios de tráfico de pessoas. Apesar do clima de medo, uma das vítimas confirmou que só conseguia sair do superlotado imóvel com a autorização do dono da oficina, boliviano, concedida apenas em casos urgentes, como levar um filho ao médico.

Terceirizados pela ALL, grupo de 51 trabalhadores era mantido em condições análogas à escravidão (foto: © Repórter Brasil)
Bem menos rumoroso, outro caso de escravidão contemporânea, também flagrado por auditores fiscais da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), maculou outra poderosa: a América Latina Logística (ALL), que se apresenta como “maior empresa independente de serviços de logística do continente”. Um grupo de 51 trabalhadores na conservação da Ferrovia Santos-Mairinque, concedida pelo poder público à ALL, era mantido em condições análogas à escravidão. A inspeção se deu há quase um ano nas cercanias da antiga Estação de Engenheiro Ferraz, no trecho que corta o Parque Estadual da Serra do Mar, em área de difícil acesso.
No local, foram encontradas pessoas aliciadas (muitas vindas da Bahia, atraídas por promessas de um “gato”, como são chamados os intermediários), com documentos retidos, sem receber salários, benefícios e sem a liberdade de ir e vir assegurada. O grupo era ainda submetido a jornadas exaustivas e a condições degradantes, em alojamentos precários que se resumiam a contêineres metálicos, em um quadro insalubre e de desumanidade.
As tarefas eram terceirizadas, ou melhor “quarteirizadas”. A ALL contratou para os serviços a Prumo Engenharia, que subcontratou a MS Teixeira, à qual as vítimas eram vinculadas. Seu proprietário, Marcioir Silveira Teixeira, foi preso em flagrante pela Polícia Civil.
Tanto a Zara como a ALL foram responsabilizadas pelos ocorridos pela posição de comando das respectivas cadeias produtivas. E se as duas gigantes em suas atividades expuseram alguma semelhança, no que diz respeito ao envolvimento em situação de trabalho escravo contemporâneo, diferiram nas respostas aos episódios.

Costura por fora

A Zara classificou o ocorrido como caso isolado de “subcontratação não autorizada” e limitou-se a anunciar “acordos” ainda não fechados de cooperação com outras entidades (para aperfeiçoamentos no monitoramento da produção, que ela já alegava ser rigoroso, e no suporte a projetos voltados a trabalhadores imigrantes). Ou seja, não mexeu no formato da cadeia produtiva, e continuará com terceiros a tarefa de produzir as roupas da grife. A ALL, por sua vez, acelerou um processo de contratação direta de trabalhadores que atuavam em terceirizadas. Até julho, 3.100 funcionários da empresa ferroviária foram “primarizados”.
Segundo a concessionária, a medida foi motivada pela “busca da valorização dos trabalhadores” que prestam serviço na ferrovia e por “maior controle de qualidade e produtividade”. Para a ALL, a efetivação das contratações diretas foi desdobramento da conclusão de estudos iniciados há dois anos. No entanto, representantes da categoria dos ferroviários veem a medida como resultado de anos de reivindicações por melhores condições de trabalho e das pressões sofridas, que podem abalar a imagem da companhia.
As terceirizações nas ferrovias são questionadas desde que o setor passou para a iniciativa privada, na década de 1990, conforme destaca Plínio Baldoni, do Sindicato dos Ferroviários de Bauru, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso. Em um mesmo local de trabalho, contratados diretos da ALL recebem um tipo de tratamento, com salários em dia e diversos benefícios, enquanto terceirizados não tinham tíquetes de alimentação de mesmo valor, direito a plano de saúde nem seguro de vida. Só entre as cidades de Bauru (SP) e Corumbá (MS), a concessionária mantinha contratos com pelo menos 30 terceirizadas, o que, segundo os dirigentes sindicais, dificultava o monitoramento.
Em outubro de 2010, uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho rejeitou as argumentações da ALL em defesa da terceirização do serviço de manutenção e conservação das linhas férreas. Determinou que a prática de terceirização fosse “reprimida” e a empresa se abstivesse de celebrar qualquer tipo de contrato de mão de obra para desempenho dessas duas atividades, sob pena de multa diária de R$ 500 por contrato de trabalho irregular.
Ariovaldo Bonini, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias Paulistas (Sindpaulista), com sede em Campinas (SP), e Rogério Pinto dos Santos, do Sindicato dos Trabalhadores das Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana (STEFZS), compartilham o entendimento de que a repercussão negativa do trabalho escravo na Serra do Mar contribuiu para sacramentar a “primarização”. Vale lembrar que a companhia abriu seu capital (com ações negociadas na Bolsa de Valores) e passou a ter como um dos acionistas o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), via BNDESPar.
Executivos da Zara, ao contrário, descartaram rever o sistema de produção de peças de roupa no Brasil baseado em subcontratações. Depois de participar de audiência pública realizada em meados de setembro na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, em Brasília, o diretor global de comunicação da Inditex, Jesus Echevarria, afastou a possibilidade de instalar fábricas próprias no país, com costureiras e costureiros admitidos diretamente, como no município espanhol de Arteixo, onde o grupo nasceu e mantém sua sede.
O negócio da companhia está baseado na contratação de “provedores externos”, segundo Jesus. “E não mudaremos isso. É a filosofia retailer (centrada na venda direta ao consumidor).” Quase 5 milhões de peças de roupa do grupo foram confeccionadas em 2010. O número consiste, porém, em menos de 1% do total da produção da Inditex ao redor do mundo.
Um dos autores do requerimento que viabilizou a audiência pública, o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), ressaltou que a extensão de crimes como o de trabalho escravo pode ser maior do que se imagina justamente pela reprodução em cascata do recurso das subcontratações, nos mais diversos setores da economia. Na opinião do parlamentar, esse tipo de expediente muitas vezes escapa às normas jurídicas e deve merecer reflexões mais intensas por parte do Poder Legislativo.
Não faltará oportunidade para tanto. Tramita no Congresso o polêmico Projeto de Lei (PL) 4.330/2004, de autoria do congressista e empresário Sandro Mabel (PR-GO), que visa regulamentar os contratos de serviços terceirizados com base em princípios que provocam arrepios à bancada mais próxima aos trabalhadores. A comparação das posições da Zara e da ALL revela nuance dos trilhos distintos de responsabilidade que cada empresa de porte pode assumir perante a classe trabalhadora e a sociedade como um todo.

Precarizados e desidratados

Deputados, juízes, empresários e sindicalistas discutem um marco regulatório para o tema, mas acordo parece distante
Por Vitor Nuzzi
O Congresso é o atual cenário de combate entre trabalhadores e empresários sobre a terceirização. Mais de 20 projetos relacionados ao tema circulam na Câmara dos Deputados, e o mais adiantado tem oposição frontal da CUT e de outras entidades sindicais. É o PL 4.330/2004, de Sandro Mabel (PR-GO), que ganhou substitutivo de Roberto Santiago (PV-SP), também vice-presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Parlamentares mostram dificuldade de conseguir uma proposta de consenso em um assunto que provoca reações às vezes apaixonadas, como se viu durante a audiência pública promovida em outubro pelo Tribunal Superior do Trabalho – a primeira da história do TST.
A legislação permite a terceirização de tarefas – atividades-meio – que não estejam ligadas à principal produção de determinada empresa – atividade-fim. Por exemplo, um banco pode terceirizar o serviço de limpeza, mas não o de compensação de cheques ou de recolhimento de valores em seus terminais de autoatendimento. O projeto de Mabel propõe mais “tolerância” como isso.
Na audiência, o deputado disse que seu projeto é “equilibrado” e não causa situações precárias de trabalho. “O que é atividade-fim e atividade-meio? Isso não existe mais”, defendeu, ao mesmo tempo em que anunciava o fim da “picaretagem” no mercado de trabalho. Mas o próprio presidente do TST, ministro João Oreste Dalazen, criticou a proposta. “Não simpatizamos com o projeto do deputado Sandro Mabel. Fazemos restrições seríssimas”, reagiu o juiz, para quem “a terceirização em atividade-fim seria a própria negação do Direito do Trabalho”.
O substitutivo de Santiago não deixa dúvidas: “Independentemente da atividade ou do setor que a empresa necessitar ou preferir terceirizar, a contratação de uma empresa especializada passa a ser o limite da terceirização, ficando superada a questão atividade-meio x atividade-fim”, diz o texto.
Para o parlamentar e sindicalista, a jurisprudência do TST criou um “controvertido e nebuloso critério”. A súmula do tribunal considera lícitas apenas algumas formas de terceirização, como trabalho temporário e serviços de limpeza e vigilância, desde que especializados e não ligados ao ramo de atividade do tomador do serviço.
Autor de outro projeto, o deputado Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho (PT-SP), ex-presidente da CUT, diz que o ideal seria acabar com a terceirização. “Mas, como isso não é possível, é preciso regulamentar para garantir dignidade e direito aos trabalhadores”, afirma Vicentinho, que também critica o projeto de Mabel. “Do jeito que está, tudo pode ser terceirizado.”
No final de outubro, CUT e CTB divulgaram declaração conjunta aos deputados na qual manifestaram preocupação com os rumos do debate. “Uma regulamentação da terceirização, qualquer que seja, atingirá mais de 30 milhões de trabalhadores e representa, na prática, uma reforma da legislação trabalhista, com grandes impactos no mercado de trabalho brasileiro, pois tem reflexo sobre diversos regimes de contratação de mão de obra”, alertam as centrais.
Segundo o procurador-geral do Trabalho, Luis Antonio Camargo de Melo, o Ministério Público do Trabalho tem nas diversas regionais 14 mil procedimentos apenas em relação a questões ligadas à terceirização. “A omissão do legislador, o vazio legal, tem proporcionado um clima de insegurança jurídica”, criticou, apontando um “crescente desvirtuamento do exercício da terceirização”.
O sociólogo Ricardo Antunes, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), vê na terceirização a porta de entrada da “degradação” no mercado de trabalho. “Quem sabe o nome dos terceirizados que limpam nossos escritórios?”, pergunta. E recorre à química para mostrar como visualiza o processo: “As empresas liofilizam e eliminam trabalho vivo”. Liofilização é um processo de desidratação de alimentos.
O executivo Gesner Oliveira, que ocupou cargos no Ministério da Fazenda durante o governo FHC, considera a terceirização inevitável e irreversível. E bate bumbo no discurso da competitividade: “Deixar de usar um fator de competitividade é um crime em termos de oportunidade”. Também professor da Unicamp, Anselmo Luís dos Santos contesta: não há relação entre terceirização e competitividade, se o objetivo é reduzir o custo do trabalho. “O padrão tecnológico não determina a forma de utilização da força de trabalho”, diz o especialista, para quem o debate é, basicamente, ideológico.

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